Li a obra numa tacada, numa chuvosa tarde de sábado, e prontamente a identifiquei como as narrativas de Malba Tahan, pseudônimo do brasileiro Júlio César de Mello e Souza, matemático que usava um personagem nômade para ensinar álgebra e geometria.
Sempre odiei matemática, mas o fato de conseguir visualizar as questões que Tahan propunha, imaginando o deserto, as estrelas, as caravanas, me fazia compreender e até apreciar os difíceis problemas de aritmética propostos por aquela curiosa figura de turbante, montada em seu camelo.
Em “O Alquimista”, Paulo Coelho provavelmente deve ter descoberto, como muitos romancistas, uma coisa chamada “memória sensitiva”, ou seja, a memória associada aos sentimentos. Um bom romance, com uma narrativa que te toque por meio da trama e dos personagens, faz com que você guarde com especial esmero aquela lembrança, armazenando-a e compreendendo-a de maneira muito mais efetiva do que estudando um frio livro didático.
Quando em 1975 James Clavell escreveu “Xógum – A Gloriosa Saga do Japão”, ele fez exatamente isso. A narrativa envolvente e os personagens cheios de vida ajudaram o mundo a redescobrir e a adorar a cultura japonesa, mais do que qualquer livro acadêmico.
O ALEPH
Em “O Aleph”, assim como em “O Alquimista” e em vários outros livros seus, Paulo Coelho usa a narrativa para discorrer – agora sobre filosofia oriental. A questão aqui é o Aleph, o Axis Mundi, o centro do mundo, ponto essencial onde tudo “está no mesmo lugar ao mesmo tempo”.
Complicado, mas simples. Esta é a noção hinduísta de eternidade. A eternidade, para os indianos, não é um tempo longo. A eternidade não é algo que dure para sempre. A eternidade não tem nada a ver com o tempo. A eternidade é uma dimensão do aqui e agora em que a noção de tempo é simplesmente desligada. Não importa o que fomos, não importa o que seremos, o que importa é que estamos vivos agora, e isso é uma dádiva maravilhosa.
A ideia do Aleph também nos leva à grande iluminação dos Upanishads, coleção de textos indianos datados do século IX a.C., em que os sábios entendem que todos os céus, infernos, deuses e demônios não são forças externas, mas existem dentro de nós, são representações das nossas energias em conflito.
Portanto, encontrar o Aleph é retornar ao seu ponto de realização, encontrar a essência que te faz vivo. É o Nirvana. Quando você consegue se desprender do medo, do desejo e dos compromissos sociais, o que resta é você mesmo, o seu ponto de êxtase, a sua verdadeira natureza. Dado curioso para os nerds é que para ilustrar isso o narrador chega a evocar a cena da morte de Roy Batty, em “Blade Runner”: quem somos, de onde viemos e para onde vamos?
A TRANSIBERIANA
A história de “O Aleph” se passa durante uma viagem que Paulo Coelho fez pela ferrovia Transiberiana, em 2006, que começa na Rússia européia e termina no Mar do Japão. Durante a jornada, vivenciada pelo próprio escritor, muitos acontecimentos tomam lugar, alguns tão curiosos que fazem a gente questionar se realmente ocorreram.
A resposta para este mistério é simples: não importa. Este é o grande segredo do escritor, que muitas vezes despertou a fúria dos críticos. Não importa a forma, não importa se os acontecimentos da viagem são fato ou imaginação – importa a mensagem. E essa deveria ser também a maneira correta de compreender a própria religião. Se nos ativéssemos mais à mensagem e menos às formas, agiríamos mais como Cristo, como Buda, como Mohamed: julgaríamos menos, amaríamos mais.
PARA QUEM JÁ LEU
Li duas vezes a biografia de Paulo Coelho (“O Mago”), escrita pelo jornalista Fernando Morais, e isso me deu bases para associar a obra a vários aspectos da vida do escritor. Para mim, “O Aleph” é também uma forma de o artista externalizar algumas de suas questões mais profundas, e se perdoar por pecados de outrora. O dominicano que aparece em visões de outra vida, que se acovarda ao deixar sua amada morrer na fogueira, pode ser uma metáfora para Gisa, sua ex-companheira, a quem Paulo virou as costas na prisão do DOI-Codi, durante os duros anos da ditadura militar. A insistente Hilal, incrível violinista que dizia não ter encontrado o seu dom, pode ser uma alegoria para o próprio escritor, que mesmo após estabelecido como compositor famoso ainda não se sentia em paz com sua felicidade.
Um dia, quem sabe, tirarei essas dúvidas com o próprio Paulo Coelho. Um dia, quem sabe. Não agora. Por enquanto, não importa.
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